Negacionismo, escravidão mental e o processo de imbecilização do ser humano (Por Zeca Barreto)

Posted: sexta-feira, 26 de março de 2021 by Zeca Barreto in
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Paciência com negacionistas foi uma das coisas que a pandemia e a tristeza levaram o que ainda restava em mim. No início eu ainda discutia, tentava não polemizar, ignorava, mas com o tempo as coisas foram piorando. Perdi alguns amigos e outros simplesmente deixei para lá. Continuo sendo grato e devendo a eles o tempo de amizade, mas a conta já está fechada, com os créditos e débitos a saldar qualquer dia.

Tentei, juro, de todas as formas, não me aborrecer com o negacionismo. Não participo mais de grupos em redes sociais onde as pessoas se agridem defendendo A e B, e silenciei ou deixei de seguir pessoas que defendem e praticam o que chamo de ensaio da loucura. Não é a política que me afasta ou as opções ideológicas, boas ou ruins, para mim ou para os outros, mas a ignorância, a insensatez, a falta de empatia e, lá no final, a burrice e a cegueira, diante do momento que o mundo está passando.

Viver na democracia é se permitir conviver com as diferenças. Você pode concordar ou discordar da política econômica empregada no País ou admirar quem defendeu e cumpriu a promessa de facilitar o acesso da população às armas, mas numa coisa deveríamos concordar: não é possível aceitar a negativa da ciência, ignorar os mortos e doentes e colocar em primeiro plano outro bem que não seja a vida. Isso não é política e não adianta misturar as coisas e atribuir tudo a uma luta ilusória entre comunistas e capitalistas ou entre direita e esquerda. A saúde e a vida devem ser alheias a tudo isso. É uma questão de coerência.

Chorei a perda de familiares, de amigos e de gente desconhecida, mas a morte de tantas pessoas não foi suficiente para que eu me acostumasse com isso, porque continuo humano e ainda choro diante do sofrimento alheio, e certamente ainda chorarei por muito tempo. Estamos sangrando e continuaremos assim, infelizmente. Enquanto escrevia este texto, um amigo me mandou mensagem informando que sua mãe, já idosa, mas que sempre teve uma vida ativa, aguardava por um leito de UTI. Sem opções porque não havia vaga, entregou sua vida aos desígnios de Deus, depositando Nele as suas esperanças. Ela morreu no dia seguinte. É desesperador.

Na televisão, vê-se milhares de pessoas se amontoando em manifestações. Não usam máscaras, incitam a violência e, com suas condutas diante da maior crise de saúde que já atravessamos, ajudam a disseminar uma doença que já matou mais de 300 mil pessoas e ainda vai matar outros milhares, pois não há médicos, leitos e remédios suficientes nem para os que já estão doentes. Quantos contaminados por esses irresponsáveis perderão as suas vidas? Não aprendemos com a história, com os exemplos. Por que ignorar a ciência e a razão? Aliás, relembrando Noam Chomsky, "a amnésia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque destrói a integridade moral e intelectual, mas também porque lança as fundações para crimes que ainda estão por vir".

A morte, a despeito do destino do corpo e da alma pela interpretação religiosa que se dê a esse evento, é uma realidade inexorável e tão natural quanto a vida. Ela é certa e para que ocorra precisamos apenas existir. Mas quando falamos de morte, de evento do qual não se pode fugir, não contamos com o processo de aceleração voluntária e nem desprezamos os meios que podem nos fazer alongar a jornada da vida. Essa equação de nascer, crescer e morrer, admite variáveis que podem alterar o curso normal, podendo o resultado ser diferido para um tempo bem distante, ou até mesmo abreviado.

Fiz essa introdução para contar um fato que aconteceu comigo, que me deixou entristecido e me levou a esse desabafo. Confesso que lamento cada momento que passo por uma decepção como a que tive, que tem se tornado muito frequente, aliás.

No final de  semana passado, pela manhã, tive que ir ao supermercado e pouco depois que abriu eu já estava lá. Coloquei a máscara de proteção e, no bolso, o inseparável frasco de álcool em gel. Na porta do mercado o empregado mediu a minha temperatura. Apontou o termômetro para o meu pulso e nem olhou o resultado. Em seguida, numa atitude mecânica, borrifou duas vezes álcool na minha mão e no pegador do carrinho. Pedi-lhe que borrifasse um pouco mais no carrinho e ele o fez, mesmo visivelmente contrariado. Segui em frente, confiando em Deus e na proteção que eu usava, nessa roleta russa que é sair de casa.

Estava tranquilo e já no final das compras avistei um amigo que não via de longa data. Trabalhamos no mesmo período no interior do Estado e frequentemente viajávamos no mesmo veículo. Gente boníssima, alegre, conversador, até então. Logo percebi que ele usava uma máscara que parecia ter sido feita de tecido de véu de noiva, quase transparente.  Era, na verdade, um faz de conta, o mero cumprimento de uma exigência relativa à obrigatoriedade do uso da máscara para acesso aos estabelecimentos comerciais e um acessório inútil diante do momento que vivemos, pois parecia uma peneira. Para mim, depois de tudo que contarei, entendi que aquilo era um ato de pura rebeldia, de afirmação do seu descontentamento por ter sido obrigado a usar para entrar no mercado.

Eis que ele se dirige a mim para um cumprimento e apenas fiz um gesto de punho cerrado, já colocando o carrinho de compras de frente para o dele, como forma de mantê-lo afastado, como sempre faço. Nada pessoal, mas é como costumo agir. Perguntou como estava a família, os filhos, e eu apenas disse que estava preocupado com eles diante da situação do país, no que ele retrucou: “que nada, não se preocupe, isso está acontecendo no mundo todo! Tenho parentes que moram e outro país (citou o país) e por lá está a mesma coisa!

Fiquei assustado com a indiferença, pois falou como se fosse algo normal porque o mundo todo está sofrendo com a pandemia. O que para mim era um motivo maior de preocupação, para ele era um simples argumento de igualdade e que nada anormal estava acontecendo.

Confesso que tentei me segurar para não responder, mas não conseguindo, disse-lhe que não era a mesma coisa, pois lá havia quem se preocupasse com o País e que não era possível qualquer comparação, já que nada era igual ao que acontecia aqui em termos de negação à realidade e que torcia para que as autoridades tivessem um discurso único em prol da vida e das medidas sanitárias, especialmente na orientação da população.

Logo percebi que o meu amigo era negacionista, na acepção mais triste da palavra. Falei das mortes e ele nem se abalou, tendo dito “que a falta de trabalho é pior que a morte”. Tentei argumentar, inclusive chegando ao absurdo de dizer, já no limite, apelando e perdendo toda a razão, que “morto não trabalha”, mas ele insistia em dizer que tudo era esperado e, como num último ato, disse ele que “a culpa era do STF” e que “se não fosse o STF o presidente poderia acabar com o lockdown em qualquer lugar”.

Já ouvi muito esse discurso por aí, mas falado por leigos que apenas replicam inverdades sem saber o que de fato dizem. Dá para perdoar, alertar, mas vindo de um profissional da área jurídica, jamais. Não me contive e disse que esperava mais dele, pelo menos na análise de uma decisão judicial. Perguntei-lhe se realmente havia lido a decisão do STF e a resposta foi evasiva e, já puxando outro argumento ainda mais estapafúrdio, exclamou com raiva: “as pessoas estão morrendo em casa!” como se o vírus morasse nas casas, nos tapetes e colchões velhos, como ácaros, ou como pulgas nos cachorros. Finalizando, do alto da sabedoria que adquiriu nos grupos de negacionistas, afirmou com veemência: “essa pandemia se cura com sol, com vitamina D. As pessoas têm que ir pra rua!”

Confesso que ainda hesitei por um segundo, um só, antes de responder e perder o amigo, mas disse-lhe que sentia muito pela contaminação mental que ele sofrera, que além de lhe retirar a capacidade de pensar, removeu-lhe o conhecimento jurídico que ainda lhe restava. Virei as costas e fui embora.

Na verdade, a mente daquele pobre está absolutamente fora da realidade e em absoluto descompasso com o que estamos vivendo. A escravidão mental e a alienação, que retirou dele a capacidade de crítica, de indignação, de autodeterminação e de empatia, acabou por torna-lo um ser humano que não se importa com a vida. Pior, fez dele uma pessoa incapaz de manter um discurso lógico, inteligível, sensato.

Mantenho amizades com pessoas que têm preferências políticas distintas, algumas extremas aos meus conceitos, mas que conseguem manter uma postura respeitosa, preocupada e consciente diante da pandemia, que não abandonaram a capacidade de pensar e de decidir de forma sensata e com esperança de que podemos superar esse momento difícil. Não há necessidade de concordar com a ideia que leva ao extermínio de milhares de pessoas.

A capacidade física e mental de preservação do poder de discernimento, de expressão dos sentimentos, do direito de fazer escolhas e de demonstrar empatia é a forma mais elementar de autonomia pessoal de um indivíduo. Fora disso, o comportamento cego, abjeto, desprezível, que brutaliza sentimentos de humanidade, é patológico e, inevitavelmente, um tratamento é recomendado.

Parece-me natural lutar e defender a vida, pois a certeza da morte para todos nós não significa que devamos desistir de viver e de evitar o final do ciclo enquanto pudermos. Não tenho dúvida que a última etapa do processo de imbecilização se completa com o desprezo da vida e do sofrimento do semelhante. Na verdade, no fim, se a pessoa não se importa com a morte ou com a dor alheia, ela certamente já morreu.

Fala sério, doutor!

Posted: quarta-feira, 13 de abril de 2011 by Zeca Barreto in Marcadores: , , , , , , ,
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Diz-se que em certas profissões o cara acha que é Deus; em outras o peste tem certeza disso. Equivale a um velho ditado que afirma que se você quer conhecer um homem, dê poder a ele.

Ao longo dos meus vinte e poucos anos (believe it or not), pude compartilhar alguns momentos com algumas figuras estranhas e pelas quais nutro verdadeiro desprezo. Na verdade, já dizia um amigo meu, que poder e autoridade não é para qualquer um. A soberba é o pecado capital que mais me causa repugnância quando o identifico em alguém e, por acaso, é o mais frequente em determinadas carreiras.

É bem certo que vivo em um meio em que a vaidade é algo que alguns acreditam piamente ser da própria essência da profissão, ainda que não seja a tônica, já que poderia citar aqui uma centena de bons exemplos de humildade e de convivência harmoniosa com o poder. Permito-me, entretanto, mirar num único e recente exemplo para escrever o presente texto, já que, confesso, nunca vi nada parecido em toda minha vida, fato que ocupou um pouco do meu tempo para estudar o que reputei como um comportamento patológico.

Sempre fiz questão de ser a mesma pessoa, muito embora de uns anos para cá a nova profissão tenha me trazido grandes oportunidades e proporcionado, além de uma vida digna, uma recompensa maravilhosa de poder trabalhar pela sociedade, e não há nada que se compare ao prazer que sinto em exercer tão formidável ofício. A pompa do terno, da gravata e do que chamo de “a capa do Batman” nunca me impressionou, tampouco a formalidade do cargo. Aliás, abro um parêntesis para indagar por qual motivo aquela peruca branca de trancinhas foi abolida, ao tempo em que parabenizo o autor da façanha que me poupou de tamanho ridículo. Usa-se esse “conjunto” por uma convenção que acho absolutamente desnecessária, sobretudo no lugar em que vivemos onde o calor e a umidade acabam por cozinhar o cidadão, o que deveria ser motivo para incentivar o seu desuso.

Mas o que me desagrada mesmo não é a vestimenta, mas a vaidade exagerada e a crença de que se está acima de tudo. Isso parece coisa de rico, mas estou falando de gente pobre mesmo, já que quem vive de salário pago pelo estado, como eu, não pode se considerar rico, ainda que se ganhe o suficiente para proporcionar uma vida confortável para a família, sem luxos ou gastos desnecessários.

O poder dado a algumas pessoas tem limites e está circunscrito a determinadas ações. Não serve, por exemplo, para comprar uma cerveja na esquina e exigir que o dono do bar te chame de doutor. Também não serve para comprar uma passagem aérea e exigir que a poltrona da fileira 13 (a que tem mais espaço), esteja sempre reservada e disponível para você com aquela plaquinha “Reservada para o Doutor”. Também não serve para decidir sobre a vida do pipoqueiro que insiste em apertar o “fom-fom” para alertar todo mundo de que tem pipoca quentinha. Quando muito, ajuda para dar uma ligada para o gerente do banco para que ele dê uma esticadinha no limite do cheque especial ou uma renegociada no empréstimo consignado. A resposta é sempre a mesma: “Pois não, Doutor! Fique tranquilo!”. Esquece o endividado, que o banco nunca perde e que os juros sempre serão cobrados. Na verdade, não vejo grande vantagem em ser “doutor’.

Digo isso porque a vaidade, em alguns casos, parece transcender os limites do cargo e alargar a sombra do próprio poder.  Aliás, em posição diametralmente inversa, lembro de uma audiência que fiz em uma comarca do interior em que um humilde cidadão tirou as sandálias para entrar na sala de audiências. Usava uma camisa de candidato, quando isso era possível, e um calção verde com uma faixa branca na lateral. Quando deu o primeiro passo para dentro da sala, parou assustado e perguntou se poderia entrar com aquela roupa. O juiz que ali estava disse que não via qualquer problema com a roupa que ele usava e aproveitou para pedir-lhe que colocasse as sandálias de volta nos pés. Confidenciou-me o cidadão, depois de encerrada a audiência, que aquela era a melhor roupa que tinha e que havia sido alertado por populares que não poderia entrar no fórum com aqueles trajes.

Mas se você pensa que isso é a regra, está redondamente enganado! Tanto na minha profissão quanto na sua, na dos outros, há aqueles que se acham acima de tudo e de todos e que, como dizia meu pai, pensam que podem ganhar a vida com a cara, metendo medo nos outros que nem sapo cururu.

Aliás, outro dia recebi uma cópia de uma sentença em que uma autoridade do Rio de Janeiro recorreu ao judiciário para exigir que o porteiro do prédio lhe chamasse de doutor. Disse o porteiro, quando advertido pelo cidadão que exigira tratamento de autoridade: "Fala sério!". Havia ficado indignado porque o empregado lhe chamava de “você” enquanto tratava a síndica de “dona”.

A sentença é uma aula de boas maneiras e da delimitação dos absurdos do poder, não tivesse sido ela tratada como “teratológica” pelo Tribunal, que ainda advertiu o Magistrado porque não concedeu a antecipação da tutela pretendida pelo autor, cujo pedido era, em síntese, o seguinte:

“(...) em razão de sua posição social, “é um homem público cuja respeitoriedade é notória” e “como homem público, tem sua honra valorada especialmente em relação aos particulares”, devendo receber o tratamento de acordo com o seu status (“Doutor”, “senhor”). O “periculum in mora” se configura porque, sem a ordem explícita dos réus, para que os empregados do Condomínio respeitem o autor, o empregado que vem insultando-o continuará a fazê-lo. Desse modo, impõe-se o deferimento da tutela antecipada, que ora requer-se, a fim de que V.Exª, liminarmente, digne-se de ordenar aos réus que orientem os empregados que trabalham no Condomínio a dar ao autor, e demais pessoas que vão visitá-lo, o tratamento formal (“Doutor”, “senhor”, “Doutora”, “senhora” etc), sob pena de multa diária de R$ 100,00 pelo descumprimento a partir da intimação.”

Destaco para vocês um trecho da sentença:

“(...) “Doutor” não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário.

Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de “doutor”, sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão doutor honoris causa — para a honra —, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que “professor” e “mestre” são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado.

Embora a expressão “senhor” confira a desejada formalidade às comunicações — não é pronome —, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.

O empregado que se refere ao autor por “você”, pode estar sendo cortês, posto que “você” não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação.

Fala-se segundo sua classe social.

O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe “semi-culta”, que sequer se importa com isso.

Na verdade “você” é variante — contração da alocução — do tratamento respeitoso “Vossa Mercê”.

A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas frequências do pronome “você”, devem ser classificados como formais.”

Não tenho a pretensão aqui de criticar qualquer pessoa que dispense tratamento formal a uma autoridade, quer seja por deferência, conveniência ou por merecido respeito, tampouco entro na discussão da relação entre a autoridade e o porteiro do prédio, até porque acho absurda demais a ideia de impor aos outros a forma de tratamento que alimenta e massageia o próprio ego, já que ninguém pode ser obrigado a sustentar a vaidade alheia. Apenas faço uma reflexão sobre o exagero na pompa e, sobretudo, os seus reflexos danosos na relação de trabalho. Aliás, conheço pessoas que adoeceram com a arrogância de alguns e que se sentem um lixo humano, o que, convenhamos, beira as raias do absurdo e indica um comportamento doentio para o qual o tratamento psiquiátrico é recomendado.

Pessoas há que são incapazes de dar um “bom dia”, pedir “por favor” para que alguém faça algo que não é sua obrigação, agradecer ou até mesmo cumprimentar o colega de trabalho, como se isso o diminuísse. O nariz empinado só serve para mostrar a meleca que tem dentro e, não raras vezes, a arrogância esconde a incompetência e o medo de expor as próprias fraquezas. É muito triste e lamentável tudo isso.

Penso, amigos, que é sábio aquele que é humilde sem ser subserviente e é nisso que reside a grandeza do homem. No mais, o grande barato da vida é fazer boas amizades, poder compartilhar momentos de alegria, sentir-se bem no ambiente de trabalho, enfim, ser feliz como eu sou.

Imagem: www.blogsilence.com

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